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Encontro: Lugar de "louco" é em todo lugar!

Atualizado: 26 de dez. de 2022




O campo da saúde mental, muito controverso, já passou por diversos embates, construções, retaliações e reinvenções ao longo da história. As discussões sobre o que é loucura e o que é normalidade acompanham o contexto histórico, a moral, os costumes, os valores sociais de cada tempo.

Existem diversas leituras a respeito da evolução dos conceitos de loucura e saúde mental e uma delas relaciona seus grandes marcos à evolução do capitalismo. Grosso modo, na passagem das sociedades pré-capitalistas à capitalista, há a leitura que considera que o que representa menor produtividade e lucratividade tende a ser deixado de escanteio. É por isso que historicamente os “loucos” se misturavam às noções de vagabundo, mendigo, doente. Ou seja, o campo da loucura sempre esteve relacionado ao campo moral.

Enquanto antes os doentes mentais eram relegados à arbitrariedade da generosidade alheia para sobrevivência, vivendo nas ruas das cidades juntamente aos moradores de rua mais tarde eram tidos realmente como problemas sociais passíveis de serem resolvidos pela ciência, medicina e justiça.

Por muitos anos os doentes mentais foram encarcerados em hospitais, juntamente com mendigos e ociosos, que recebiam um mesmo tratamento, caracterizado por maus tratos e punições.


Os hospitais psiquiátricos


Compreender o doente mental como sujeito desejante, dotado de personalidade própria, que possui uma leitura crítica do mundo fez parte de um processo histórico de amadurecimento.

No Brasil esse processo foi influenciado por um movimento mundial maior, que teve início na Itália a partir do psiquiatra Franco Basaglia (1924 – 1980), permitindo uma mudança de paradigma radical nesse campo. Na década de sessenta, Bagalia assume a direção do Hospital Psiquiátrico de Gorizia, na Itália, onde testemunhou diversos abusos e negligências no tratamento dos pacientes. A partir de sua experiência, reúne um corpo de psiquiatras e com a instituição de novas práticas nos atendimentos desses enfermos funda o que ficou conhecido como “Psiquiatria Democrática”, embrião do “Movimento da Luta Antimanicomial” que surge mais tarde.

Notícias desse movimento no país vieram na década de setenta. O contexto geral da ditadura militar acelerou as privatizações e influenciou na proliferação de hospitais psiquiátricos particulares. O que já era caótico em termos de atendimento a esses enfermos piora drasticamente e configura uma real "indústria da loucura”, pois percebeu-se a grande rentabilidade que essas internações viabilizavam.

Antes desse período,tivemos Casas de Misericórdia na gestão de Dom Pedro II, que abrigavam todos aqueles que eram considerados “sem função social”: loucos, mendigos, doentes, pobres, velhos. Essas instituições eram locais de isolamento e exclusão social e não contavam com nenhuma assistência médica. A fundação do primeiro hospital psiquiátrico no Brasil foi viabilizada pelo próprio Dom Pedro II no Rio de Janeiro que permaneceu, porém, com o mesmo caráter segmentador. Com a proclamação da república e o seguimento da Psiquiatria Científica inaugura-se o Hospital de Juqueri, localizado em Franco da Rocha, como tentativa de criar um ambiente terapêutico e devolver os indivíduos à comunidade como cidadãos. No entanto, a realidade anterior permaneceu: hospitais hiperlotados e péssimas condições de atendimento aos doentes.

A realidade dos hospitais psiquiátricos e seu histórico bárbaro de violência e desumanidade foi retratada na história mundial e brasileira por livros, filmes, reportagens e documentários. Uma dessas referências conta a história do maior manicômio brasileiro pelo livro “Holocausto Brasileiro – Vida, Genocídio e 60 mil Mortes no Maior Hospício do Brasil”, de Daniela Arbex, de 2013. Localizado na cidade de Barbacena, Minas Gerais, este manicômio foi palco de um genocídio de pelo menos 60 mil pessoas no período entre 1903 e 1980 e era conhecido como "Colônia" por ter abrigado atos de crueldade praticados nos campos de concentração nazistas da Segunda Guerra Mundial. Como descreve a autora, a maioria de sua população estava internada à força e cerca de 70% dela não possuía diagnósticos de doença mental.

O hospital acabou sendo usado como abrigo de pessoas indesejadas socialmente, como epiléticos, alcóolatras, homossexuais, prostitutas. Chegou a abrigar 5000 pessoas em condições insalubres, enquanto sua capacidade original era de 200 pacientes, e foi acobertado pelas condições políticas ditatoriais da época com a cumplicidade da comunidade médica, de funcionários e da população.

Foi somente na década de oitenta que houve uma mudança radical no modelo psiquiátrico brasileiro e o término das construções de hospitais psiquiátricos no país. Na década de 90, deu-se a substituição paulatina dos tratamentos em hospitais por atendimentos comunitários, que priorizavam a cidadania e, portanto, a inclusão desses sujeitos na sociedade.


A necessidade (urgente) de uma mudança de paradigma

Os movimentos de saúde, como o movimento da reforma sanitária, movimento de renovação medica, discussões da Organização Mundial de Saúde, entre outros, surgem para contestar a constrangedora realidade dos manicômios. A década de 1980 é marcada por várias experiências de hospitais substitutivos nos estados brasileiros e pelo movimento da "Luta Antimanicomial".

Em 1987, ocorre a I Conferência Nacional de Saúde Mental como desdobramento da 8ª Conferência Nacional de Saúde, que decretou o SUS – Sistema Único de Saúde. É nesse momento que ocorre uma mudança radical do modelo psiquiátrico vigente e o término das construções de hospitais psiquiátricos. No mesmo ano de 1987 no II Encontro Nacional de Trabalhadores em Saúde em Bauru definiu-se o dia18 de maio como Dia Nacional da Luta Antimanicomial e adotou-se a bandeira “Por uma Sociedade sem Manicômios”.

A Luta Antimanicomial tem como objetivo principal o fim dos hospitais psiquiátricos pelo gasto inútil de verbas públicas e forma de atenção ultrapassada, excludente e violenta. Sua proposta é a criação de serviços substitutivos em saúde mental, como CAPS, NAPS, hospital-dia, ambulatórios, UBS com equipes mínimas, emergência psiquiátrica, leitos psiquiátricos e outros.

As discussões do movimento procuraram desestigmatizar a loucura e a conceberam como sendo uma manifestação subjetiva como qualquer outra. Além disso questionou-se o modelo asilar e a concepção histórica e social do fenômeno da loucura.

Os Conselhos de Psicologia têm sido parceiros dessa luta ao longo de todos esses anos, combatendo as lógicas de exclusão e o estigma às pessoas que convivem com os “transtornos mentais”, não remediando esforços na construção de tratamentos mais humanizados que protejam seus usuários contra qualquer forma de abuso ou exploração conforme determinação da Lei de Reforma Psiquiátrica nº 10.216/2001.


O que cura é amor incondicional

Nise da Silveira foi uma expoente no caso brasileiro e símbolo de uma mudança qualitativa no olhar ao doente mental. Visionária e realista, teve sua história em partes retratada no filme “Nise - O coração da loucura”, de Roberto Berliner de 2016.

Em plena ditadura militar, foi presa por pouco mais de um ano, denunciada como comunista, em 1936. Foi em 1944 que retorna ao trabalho, alocada dentro do serviço público no Centro Psiquiátrico Pedro II no Rio de Janeiro, o primeiro hospício do Brasil. Lá entra em contato com as técnicas de tratamento vigentes aos doentes mentais como eletrochoque e lobotomia. Com uma nova proposta terapêutica, Nise funda uma ala no hospital chamada “Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação” onde propõe um ateliê de pintura e arte e apresenta sua primeira exposição quatro meses depois.

Sua ousadia nos inspira até hoje na prática clínica e um exemplo disso é o evento “Ocupa Nise”, que ocorreu de 2011 a 2016, e foi promovido pela Universidade Popular de Arte e Ciência dentro do antigo hospital em que ela trabalhava, Centro Psiquiátrico Pedro II no Rio de Janeiro, que posteriormente passou a se chamar Instituto Municipal Nise da Silveira. O evento reunia arte, ciência, educação popular, teatro, música e dança em prol da saúde mental.


Uma das repercussões do movimento em Piracicaba - SP

O coletivo de psicólogos “Vem pra Roda”, do qual faço parte, realizou em 9 de Maio de 2019 um evento em Piracicaba denominado “De Frente com a Loucura: Conquistas, desafios e contradições do trabalho em Saúde Mental” que teve o objetivo de discutir as políticas de saúde mental e sua aplicação prática na cidade.


Com grande número de participantes o evento foi realizado na Associação Paulista de Medicina de Piracicaba. Contou com um público bastante heterogêneo, incluindo profissionais da atenção primária, secundária e terciária do SUS, profissionais autônomos da área da saúde, profissionais da rede de assistência social, comunidade, usuários dos serviços e estudantes.

A mesa foi composta por Vandrea Novello, atual coordenadora dos serviços de saúde mental do Município, dois representantes da Casa das Oficinas, instituição que abriga atividades artísticas e artesanais composta pelos usuários dos Centros de Atenção Psicossociais, Seu Amaro e Dona Madalena (sem os sobrenomes como preferiram ser identificados), e o médico sanitarista Felipe Augusto Reque.

O evento se iniciou com a amostra do documentário "Hotel da Loucura - Gênese" (2014), que conta a história do movimento "Ocupa Nise", mencionado acima, e seguiu com o debate entre a mesa e o público de forma bastante participativa (veja acima algumas fotos do encontro).


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Atualmente a Luta Antimanicomial mostra sua força e reúne profissionais e comunidade ao longo do país em defesa dos cuidados humanizados em saúde mental. A luta hoje também se relaciona ao campo moral: o que se defende é a valorização de tratamentos que reconheçam as diferentes formas de subjetividade, enfrentando o estigma que o “louco” carrega de segregação social. Eis o motivo do título do texto: "Lugar de louco é em todo lugar!", ao que se pode acrescentar que lugar de louco é onde ele quiser estar assim como todos nós, afinal, de louco todos temos um pouco... ou muito!





REFERÊNCIAS

Gradella Júnior, O.: Hospital psiquiátrico: (Re) Afirmação da Exclusão. Psicologia e Sociedade (Impresso), São Paulo, V. 14, P.87-102,2002.

Holocausto Brasileiro - Vida, Genocídio e 60 mil Mortes no Maior Hospício do Brasil, Daniela Arbex, Geração Editorial, 2013.

Nise - O coração da Loucura, Roberto Berliner, Imagem Filmes, 2016.

Hotel da Loucura - Gênese, Mariana Campos, Lapilar Produções Artísticas, 2014.



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